gentrificação: reverberações de um mundo perverso
diálogo teórico entre Milton Santos e Neil Smith
É
para se tornar cada vez mais idêntico a si próprio, para se
aproximar o melhor possível da monotonia imóvel, que
o espaço livre da mercadoria é,
doravante, a cada instante modificado e reconstruído.
Guy
Debord, A
Sociedade do Espetáculo (§
166).
Fato
inegável do mundo contemporâneo é o que nos diz que mudanças
bruscas a respeito da noção de espacialidade e de uso efetivo da
cidade se desencadearam ao longo do século XX, endossadas
concretamente por sucessivas re-configurações no cenário econômico
mundial. A própria dinâmica de um mundo que assistiu ao gradual
processo de globalização econômica – globalização esta que vê
em tudo mercadoria e trânsito de mão-de-obra – afeta
invariavelmente os meios possíveis de vida desencadeando – como,
afinal, não poderia deixar de ser – práticas outras, muito
diferenciadas, de formatação do espaço humanamente construído, de
apropriação e conceituação do mesmo. Quando as transações
econômicas tendem inevitavelmente a assumir uma dimensão
globalizada, quando as fronteiras nacionais se tornam inconsistentes
em termos práticos e as cidades se intercomunicam indiretamente, as
espacialidades construídas se moldam fluida e desequilibradamente.
Tal fenômeno, caracterizado por Milton Santos como globalização
perversa,
é o mesmo que, nos compromissos de consumo e mundialização, da
velocidade e da unicidade do discurso sobre o mundo, revela uma
realidade factual que se consuma na diluição do território e na
re-articulação arbitrária e lucrativa de seus usos.
Coadunados com
Milton Santos, entendemos território como um meio que, representado
e praticado
coletivamente,
pode ser resumido na equação entre “o chão e mais a população,
isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo
que nos pertence”1.
Tendência visível da ordem econômica global é extirpar dos
territórios sua própria substância prática e comunitária
autoconstruída para torná-los – mediante intervenções do Estado
e/ou de iniciativas privadas – verdadeiro bombeador financeiro, um
nicho de mercado nas suas mais variadas formas. Recorrente em tal
perspectiva é o não-reconhecimento das dinâmicas espontâneas das
cidades, das construções que as próprias comunidades fazem para si
do espaço, em função de uma cidade
globalizada
inscrita na ótica mercantil que não excepcionalmente se manifesta
como um fim em si mesma2.
O que Smith chama
de um novo urbanismo do século XXI é marcado justamente por esse
tipo de não-elo – ou, pode-se dizer, uma diferença de pesos entre
as partes envolvidas concretamente nessas tramas – que predomina
precisamente entre as coletividades locais e o foco de poder do
Estado em coligação com os empreendedores. O processo de
gentrificação, que hoje apresenta – segundo Smith – aspectos
diversos dos que se desenvolveram durante finais do século XIX e
inícios do XX, é emblemático em meio à atual conjuntura. As
iniciativas pela valorização imobiliária que num primeiro momento
é perpetrado por atores individuais – não perdendo, ao fim e ao
cabo, sua natureza “classista” de ser –, que literalmente
expulsa de regiões da cidade indivíduos em condição
sócio-econômica menos avantajada para a realização de deliberada
higienização dessas regiões, recebem hoje o habeas
corpus do
Estado para a consolidação dos interesses privados adequados à
economia mercantil global.
Com Smith, podemos
traçar como determinante primordial para o entendimento das práticas
de gentrificação o fato de que elas compõem “contextos culturais
e econômicos de nível muito local e se conectam de maneira muito
complexa com as economias nacionais e globais”. Contudo, as
modificações que delineiam o processo ao longo de mais de um século
tenderam a ocultar sua face “classista” por trás de discursos
que levam em consideração as rápidas mudanças ocorridas na
geografia econômica3.
Atualmente, esse tipo de iniciativa que não raramente gera alto
contingente de sem-teto ou mesmo o desmantelamento completo de
comunidades que erigiam, elas mesmas, histórias próprias se move em
consonância com os ditames de um mundo pretensamente homogeneizado,
em que todos alcançam todos e tudo, não obstante os verdadeiros
distanciamentos postos cotidianamente de indivíduo a indivíduo,
grupo a grupo se mantenham, se não acirrados, intactos. A idéia de
que uma cidade deve se construir com base nas demandas
desterritorializadas dos mega-investimentos corporativos ou mesmo da
força repressora do Estado são os ingredientes mais sintonizados da
lógica perversa da globalização que se desenrola – desde seu
primeiro som no fim do século XX até seu aprofundamento mais hostil
em menos de dez anos de século XXI. A globalização que dá forma
ao segundo mundo de um só mundo tripartido que Santos alardeia ser a
mesma que localmente enxota comunidades do próprio território que
as mesmas construíram (e onde as mesmas se ergueram),
substituindo-os sem zelo pelas grandes transnacionais que, agora ali
instaladas, não firmam qualquer tipo de compromisso com as condições
materialmente dadas nessas localidades. O local se subsume
inexoravelmente num global abstrato que rege o caráter fabuloso
de um mundo repleto de ilusões necessárias para escamotear as
muitas facetas de uma miséria imediatamente cotidiana. Uma
“ideologização maciça” que faz contrapartida aos uivos do fim
das ideologias4.
A perspectiva perversa da globalização como ela tem se dado é essa
que não reconhece a cidade como o local mesmo do movimento. Ou seja,
sempre inconstante, qualquer deslocamento arbitrário voltado para a
solução de “anomalias” mínimas situadas em seu seio é capaz
de gerar efeitos anômalos tão intensos e, cabe reforçar, perversos
quanto os precedentes, ou ainda mais pujantes.
Acompanhando crises
econômicas agudas, a gentrificação passa rapidamente, do final da
década de 1990 até os dias de hoje, dos centros às periferias –
pelo menos em Nova Iorque –, mantendo o mesmo aspecto inicial,
abrindo alas para que as classes médias – consumidoras em maior
potencial – ocupem, pela força aquisitiva, os novos paraísos
higiênicos do mercado. Os centros urbanos se tornam focos de novos
fluxos de capital globalizado, o que de certa forma se torna, para
Smith, a marca de uma última fase de gentrificação5.
Deste modo, as resistências surgem pontualmente, focalizadas
exatamente na prática gentrificadora. A diversidade de movimentos
voltados contra a especulação em todos os seus matizes pode se
fazer aparecer na forma de organizações de sem-teto, squatters6,
locatários. Smith denomina tal contraponto de movimentos
anti-gentrificação,
e aponta o “alto grau de repressão a que foram expostos”7
em vários locais do mundo (e podemos dizer seguramente que o Brasil
se insere nesse contexto). Santos qualifica esse fenômeno avesso à
lógica apregoada como uma esquizofrenia
do espaço,
isto é, impossível a imposição de uma ordem que não produza uma
contra-ordem por parte dos que, de uma forma ou de outra, se vêem à
parte ou ao relento de um mundo que, pretensamente hegemônico, os
condena à marginalidade ou visa a impor-lhes o silêncio. A
individualidade se joga contra a unicidade de pensamento que rascunha
justamente a suposta homogeneidade e hegemonia de uma ordem posta,
assimilando as condições materiais do mundo contemporâneo e
buscando entender criticamente os paradoxos – que, como diria
Santos, devem ser apreendidos como a
contradição em estado puro
– em torno das mesmas. Corpos que não vêem no mundo globalizado
que vem sendo produzido o lugar
de
suas próprias potencialidades.
NOTAS:
1
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro:
Record, 2006, p. 96.
2
Ver SMITH, Neil. “A gentrificação generalizada: de uma anomalia
local à ‘regeneração’ urbana como estratégia urbana global”.
In. BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine et al (coord.). De volta
à cidade: do processo de gentrificação às políticas de
“revitalização” dos centros urbanos. São
Paulo: Annablume, 2006, p. 80.
3
Idem, pp. 62, 63.
4
Ver SANTOS, Milton. Op. cit., pp. 18-20.
5
Detalhes em SMITH, Neil. Op. cit., pp. 76-77. Como exemplo
disso, podemos resgatar experiências como as de Belo Horizonte,
durante as recentes reformas pela revitalização do hipercentro, em
que, além de gerar um estrondo momentâneo nos preços dos
imóveis, produziu de forma aleatória ou evidente o sumiço de
parte dos moradores de rua do entorno, anteriormente habitantes
corriqueiros da Praça da Estação ou da Praça Sete. Em São
Paulo, de 2004 a 2006, durante as obras assinadas pela prefeitura de
José Serra, alvoroço significativo foi engendrado por parte de
movimentos de sem-teto que foram “desalojados” massivamente em
curto período de tempo. Ambos os empreendimentos citados tiveram
montante considerável de capital privado como recurso, e, no caso
específico da capital mineira, cogita-se que parte do empréstimo
do Banco Interamericano de Desenvolvimento que seria revertido ao
projeto da Linha Verde foi também direcionado às obras do Centro,
com destaque para a reconstrução da Praça da Estação.
6
Conhecidos por esse nome no Brasil sob um modelo mais contracultural
e subterrâneo, embora digam respeito, na Europa e Estados Unidos,
meramente a movimentos de ocupações de habitações abandonadas ou
inutilizadas.
7
Ver SMITH, Neil. Op. cit.,
pp. 77-78.
Referências
bibliográficas:
ARENDT, Hannah. A
condição humana.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
BIDOU-ZACHARIASEN,
Catherine (coord.). De
volta à cidade:
do processo de gentrificação às políticas de “revitalização”
dos centros urbanos. São
Paulo: Annablume, 2006.
BOURDIEU, Pierre. O
Poder Simbólico.
Lisboa: Difel/Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
DEBORD, Guy. A
sociedade do espetáculo.
Belo Horizonte: Edição Pirata (Coletivo Acrático Proposta), 2003.
SANTOS,
Milton. Por
uma outra globalização.
Rio de Janeiro: Records, 2006.
Revista
Projeto História:
espaço
e cultura, vol. 18. São Paulo: EDUC, 1999.