A Arte de Fazer Nada
por Thomas J. Elpel
Quando os primeiros orientais encontraram os bandos dos índios Shoshone na Grande Bacia do Deserto, era comum eles os descreverem como "miseráveis e preguiçosos". Muitos observavam que eles viviam em uma terra desolada e mesmo assim pareciam não fazer nada para melhorarem sua situação. Eles não construíam casas ou vilas; tinham poucas ferramentas ou possessões, quase nenhuma arte, e armazenavam pouco alimento. Parecia que tudo o que faziam era sentar-se e fazer nada.
Os Shoshone eram verdadeiros caçador-coletores. Eles passavam suas vidas caminhando de uma fonte de alimento a outra. O motivo deles não construírem casas era porque casas eram inúteis para eles em seu estilo de vida nômade. Eles carregavam tudo o que tinham em suas costas de lugar a lugar. Eles não fabricavam muitas ferramentas, ou possessões, ou arte, porque se tornariam um fardo para carregar.
Geralmente pensamos que tais culturas primitivas como as do Shoshone deviam trabalhar o tempo todo só para sobreviverem, mas na verdade eram pessoas com muito tempo livre. Estudos antropológicos em diferentes partes do mundo indicam que as sociedades do tipo caçador-coletoras trabalhavam tipicamente somente duas ou três horas por dia para sua subsistência. Como o cervo e os outros animais selvagens, os caçador-coletores tinham nada mais a fazer do que caminhar e comer.
Os Shoshone tinham muito tempo em suas mãos apenas porque eles praticamente não produziam cultura material. Eles não estavam sendo preguiçosos; eles estavam apenas sendo econômicos. Ficar sentado fazendo nada por horas no final os ajudava a conservar preciosas calorias de energia, e então não precisariam colher muitas mais calorias por dia para se alimentarem.
Hoje muitos de nós ocidentais nos vemos fascinados com essas culturas simples, e alguns de nós realmente nos mergulhamos nelas para reproduzir ou recriar o estilo de vida primitivo. Em nosso ardor típico ocidental nos colocamos logo a produzir, produzir, produzir. Trabalhamos ambiciosamente para aprender cada habilidade primitiva, e produzimos todos os tipos de roupas primitivas, ferramentas, recipientes, e arte, e simplesmente coisas. Culturas realmente caçador-coletoras carregavam tudo o que possuíam em suas costas, mas nós primitivos modernos logo nos vemos precisando de uma picape só para mudar de acampamento! Em nosso esforço para recriar o estilo de vida primitivo descobrimos que ironicamente nós perdemos completamente o foco — que nós fizemos muitas coisas primitivas, mas nós nem começamos a compreender a real natureza de uma cultura primitiva. Para realmente compreendermos essa essência é preciso nos desprender de tudo para começarmos a entender a arte de fazer nada.
Entender a arte de fazer nada é de certa forma um conceito desafiador para nós ocidentais. Quando viajamos para um acampamento "primitivo", levamos nossos preconceitos ocidentais conosco. Nós procuramos um local nivelado em um campo para construirmos nossos abrigos, e se o terreno não é nivelado então nós o nivelamos. Então juntamos nossos materiais e começamos do zero, construindo os muros e o teto de um abrigo. Nós fazemos o que estamos acostumados a fazer; nós fazemos o alicerce da casa em um lote demarcado no campo. Então juntamos materiais e cobrimos o teto, sem se preocupar se há alguma nuvem no céu, ou se ao menos choveu durante o mês.
Nós agimos assim em parte por causa da nossa educação cultural. Outra parte é simplesmente porque é mais fácil para aqueles de nós que ensinamos, ensinarmos algo ao invés de ensinar nada. É muito mais fácil ensinar como fazer algo do que ensinar a não precisar fazer nada. A abordagem do fazer-algo em habilidades primitivas é a de fazer tudo o que você precisa, enquanto o método do fazer-nada é a de encontrar tudo.
Por exemplo, o método do fazer-nada de se abrigar é encontrar um abrigo, ao invés de construí-lo. Duas horas gastas procurando por um abrigo parcial que possa ser melhorado poderá facilmente te salvar de duas horas de trabalho duro de construção, e você geralmente conseguirá um abrigo melhor dessa maneira. Mais ainda, o método do fazer-nada de se abrigar é observar primeiro o tempo atmosférico, e construir somente o que é necessário. Se não vai chover então você poderá fazer-nada para se cobrir da chuva no abrigo. Então talvez você somente precisará se esforçar em um abrigo que irá te manter aquecido, ao invés de te manter aquecido e seco.
Existem muitas coisas, ambas pequenas e grandes, que uma pessoa pode fazer, ou não fazer, para melhorar a arte de fazer nada. Isso pode ser simples como tomar a água de um córrego com as mãos em forma de concha ao invés vez de fazer e carregar uma caneca, a quebrar varas até conseguir uma ponta afiada, ao invés de usar uma faca para metodicamente entalhar uma vara para cavar. Colheres e garfos entalhados em madeira são utensílios do fazer-algo, que você tem que fabricar, carregar, e pior, que você tem que limpar. Mas pauzinhos de comer (de galhos, como os utilizados pelos japoneses e chineses) são utensílios do fazer-nada que não precisam ser fabricados ou carregados, e você pode jogá-los no fogo quando terminar de usá-los. (NT: Comer com as mãos é outra opção. Abrir um coco e utilizar sua parte interna tanto como recipiente para comida e bebida, quando para colher, cavar, e outras coisas mais, também faz parte do método do fazer-nada. Ao terminar de usá-lo, você pode simplesmente deixar onde achou. Não existe mais o conceito de lixo, pois faz parte do ambiente. Observar à sua volta e usar o que você precisa.)
Henry David Thoreau escreveu sobre uma pedra que usava como peso de papel em sua cabana no lago Walden. Ele jogou a pedra fora quando percebeu que tinha que limpá-la de poeira. Essa é exatamente a essência de uma atitude de fazer-nada.
A abordagem do fazer-nada nas habilidades primitivas é algo que você faz. Fazer nada é uma forma de economizar tempo e energia, para que você possa terminar suas tarefas diárias de modo mais eficaz. Uma coisa que eu descobri através de anos de pesquisas experimentais em habilidades primitivas, é que raramente há horas suficientes em um dia para completar todas as tarefas diárias. É difícil sair e construir abrigo, fazer um arco para obter fogo, procurar por raízes e cavar, fazer tigelas e colheres, e cozinhar o jantar. Sociedades caçador-coletoras tiveram sucesso trabalhando somente duas a três horas por dia, e mesmo assim em nossos esforços para reproduzir seus estilos de vida nós acabamos trabalhando o dia todo.
Fazer nada é uma abordagem à pesquisa; é um modo de pensar e fazer. Por exemplo, eu faço muitos estudos marcando o tempo de várias técnicas primitivas – ex: quanto tempo leva-se para construir um tipo de abrigo? Quanto de uma fonte específica de alimento eu posso colher por hora? Eu consigo aumentar a colheita usando diferente técnicas de coleta?
Culturas caçador-coletoras eram muito boas em fazer nada. Exatamente quão bem eles faziam isso é difícil de determinar pois fazer nada acaba deixando nenhum vestígio arqueológico. Toda vez que encontramos um artefato nós temos documentação de algo que eles faziam; no entanto a parte mais importante de suas habilidades pode ter sido o que eles não faziam, e não existe forma de descobrir o que era isso ao estudar o que eles faziam.
Mesmo assim, o que você irá descobrir por você mesmo, enquanto aprende a arte de fazer nada, é que você está muito mais em casa na natureza selvagem. Você não mais estará dependente de muitas ferramentas e dispositivos; você não mais irá precisar modificar os elementos da natureza para se adequarem às nossas definições ocidentais. Você descobrirá que precisa de menos e menos, até que um dia você descobrirá que você não precisa de nada. Então você terá o tempo em suas mãos para que você possa escolher fazer nada, ou até mesmo ir fazer algo.
Thomas J. Elpel é o diretor da Hollowtop Outdoor Primitive School em Pony Montana, e o autor de quatro livros, incluindo Participating in Nature: Thomas J. Elpel’s Field Guide to Primitive Living Skills (tradução literal: Participando na Natureza: O Guia de Campo de Thomas J. Elpel de Habilidades do Viver Primitivo). A Arte de Fazer Nada foi publicado na Society of Primitive Technology’s Bulletin of Primitive Technology, Publicação #10, Outono de 1995.