5 sonhos do zapatismo, 5 sonhos para a resistência

Eis um texto que acho da hora e que pode ser inspirador. 

5 sonhos do zapatismo, 5 sonhos para a resistência
César Enrique Pineda Ramírez
18 de fevereiro de 2005.

Imaginem
por um momento que o capitalismo é uma edificação. Uma voluptuosa e
faraônica obra que a humanidade construiu nos séculos recentes. Um
sólido muro, quase perfeito que não pode desintegrar-se, já
que os
materiais com que é feito são a dominação, a exploração e a alienação.
Se alguém olha o muro, parece que não há forma de derrubá-lo. Parece
impenetrável, inexpugnável. Não há maneira de escapar do muro.

Aproximen-se
agora um pouco do muro. Olhem detidamente. Seus olhos têm que fazer um
grande esforço. O muro… tem uma fenda. É uma pequena rachadura, quase
imperceptível. Por essa abertura, se uma pessoa
focaliza bem a
vista, parece que se pode ver do outro lado. Mas a rachadura não deixa
ver muito bem. É uma fissura, que parece, não faz nenhum dano à solidez
do grande muro. Essa fissura, é o zapatismo.

O zapatismo nos
ajuda a ver do outro lado. A sonhar com o outro lado, já que mal
podemos ver uma pequeníssima parte. Alguns dizem, que esta idéia é uma
ilusão, algo infantil, mal uma quimera juvenil, desorientada e
confusa. Nós cremos que é uma possibilidade, uma rota por explorar, um caminho que quiçá podemos caminhar.

O
zapatismo nos ajuda a pensar ao inverso. De fato, em muitas formas, é
uma revolução ao inverso. É um exército que não usa suas armas. São
revolucionários que falam de amor. É uma forma de fazer política que
não procura tomar o poder. São indígenas pobres, não uma vanguarda
iluminada cujo programa, liderança e carisma se tenha que seguir
cegamente.

O zapatismo tem muitas possibilidades de
interpretação e de leituras. Façamos uma mais. Reorganizemos as
contribuições do zapatismo às resistências do México, América e o
mundo, para dizer que são cinco.Comecemos por uma delas.

1) Por um mundo onde caibam muitos mundos.

Diversidade e identidade

Durante
muitos anos, de fato durante os últimos dois séculos, o pensamento
humano e também dos movimentos de resistência foi construído sob
algumas premissas básicas. O pensamento moderno, sob o influxo da
ilustração,
do pensamento newtoniano e depois do positivismo gerou a visão de que
poderiamos construir a verdade a partir da racionalidade. Construiu-se
a idéia de que poderiamos encontrar através da ciência, a
verdade,
e com ela, construir leis universais do funcionamento da história.
Nossos movimentos, os movimentos de resistência históricos adotaram
esta visão. Se encontrávamos e compreendíamos esse
funcionamento, só era questão de seguir as pautas dessa verdade científica para construir a revolução.

Esta
idéia sobre a verdade, a racionalidade e a ciência, gerou um marco de
pensamento patriarcal, linear, mecanicista, teleológico, que ajudou
muito
na construção de uma modernidade desenvolvimentista e em constante
expansão. A idéia de progresso, desenvolvimento e crescimento se adotou

pela humanidade, pela esquerda e por nossos movimentos como um fato sem questionamento da evolução humana.

Mas
esse pensamento ajudou muito ao funcionamento de um sistema que
precisamente precisa crescer sem obstáculos. É o funcionamento do
capitalismo. O capitalismo cresce, ou perece.

Esse pensamento
está em crise hoje. O zapatismo se inscreve na desestruturação desse
pensamento. É por que as bases deste pensamento modernizador,
desenvolvimentista, positivista causaram vários estragos.

Os
zapatistas, o zapatismo, propõem um mundo onde caibam muitos mundos. O
zapatismo propõe a idéia da verdade múltipla frente às leis universais
de
verdades únicas. O EZLN disse que "as verdades nascem,
crescem,desenvolvem-se, decaem e morrem". O pensamento dominante ou
hegemônico ajudou a criar a idéia de que se tinha que
homogeneizar,desenvolver, modernizar. Esta visão ajudou a arrasar a
diferença,
as culturas, "os diferentes" em nome de uma modernidade racional que
avançava inexoravelmente para um mundo melhor. Os povos índios, mas não
só eles, sofreram as conseqüências desta visão. O zapatismo se inscreve
numa onda de novas idéias que nos dizem que a
história não está
escrita, que não necessariamente avançamos para um sistema melhor, e
que o múltiplo e o diverso não são um obstáculo, senão que as
diferenças são uma riqueza a proteger, a preservar. A
diversidade
nos ajuda a avançar. Um mundo onde caibam muitos mundos é a proposta de
um outro mundo onde convive, em unidade, a diversidade,
sem que
uns se imponham a outros. Um mundo onde cabem todos, não é só uma idéia
utópica do futuro, é uma forma de ver-nos, sonhar-nos, falar-nos entre
nós. Hoje a política não se faz mais em nome de
verdades científicas. O zapatismo é parte desta nova forma de pensar, que dizemos, é pensar ao inverso.

2) Que o que mande, mande obedecendo.

Estado e poder

É
suficiente tomar o poder político?, concebido este como o poder do
estado, o poder que se considerava como o único e o mais importante. O
zapatismo, e nós, cremos que não. Que poder do estado é um poder
inevitável, sim, mas não é todo o poder, nem é todo o político. Mais
importante que quem esteja no poder dizem os zapatistas é que quem está
no poder, mande, mas mande obedecendo. Esta idéia com que o zapatismo
contribui, é de novo uma idéia ao inverso. A esquerda construiu uma
idéia providencial e heróica da tomada do poder. O caminho da
transformação ou da queda do capitalismo é uma grande odisséia, quase
sempre encabeçada por
um herói, enche de dor e sofrimento onde ao
final do caminho, a vitória,isto é, a tomada do poder é a grande
chegada, o grande dia, o momento em que se bifurca a história em duas
grandes etapas. Num antes e num depois. A partir daí, e SÓ a partir
daí, a história e o homem começavam a mudar. É o que Immanuel
Wallerstein chama a estratégia de dois passos: tomar o
poder e
depois, e só depois, mudar ao mundo. A estratégia dos movimentos de
resistência girava ao redor desta rota. Era uma estratégia digamos,
estadocêntrica.

Mas
esta idéia também se deteriorou, ainda que siga sendo muito importante.
O zapatismo, ao propor que o que mande, mande obedecendo, reconhece a
idéia da representatividade, mas com novos e coletivos
controles
democráticos. Concebe às direções e as lideranças como resultado de um
processo coletivo democrático, não como a vanguarda clarificante que
deve
guiar-nos ao grande dia da transformação. A história do zapatismo
também está cheia de exemplos de como o estado e sua força não são o
único referencial e muitas vezes nem o mais importante em sua
estratégia
política. Evidente que há conflito frente ao estado
dominante e as elites mexicanas que governam. O levante armado deixa
claro isto. Mas seu atuar parecesse uma lógica muito mais ampla, sua
agenda não só define o conflito estatal. Há outras áreas, "outra coisa"
dizem os colegas zapatistas, que é desenvolver suas próprias forças,
dialogar com o resto, pensar nas alternativas, falar delas. Tudo isso
não necessariamente está unido de forma direta com o poder estatal.

Mandar
obedecendo significa repensar o poder. Não é só uma proposta ética,
senão uma proposta que desarticula a lógica do poder tal e como a
conhecemos. Desarticular as regras do poder implica evidentemente a
luta
acima, contra os senhores do poder e a exploração mas também
abaixo, entre nós, rompendo os esquemas de dominação em nossas
famílias, trabalho e
escolas; entre homens e mulheres, entre
adultos e jovens, entre raças, em nossas organizações e coletivos, em
nossas relações cotidianas. É gerar
uma nova relação que permita a
construção de um novo poder que decida de baixo para acima, que se
autogoverne e determine assim mesmo. Implica
construir uma ordem social alternativa e global.

Esta
proposta é crítica do sistema imperante em seu conjunto e não só do
governo da vez. É uma revisão à lógica do sistema e não só uma crítica
aos
dominadores. Mandar obedecendo significa também a subordinação
do estado aos povos. Implica a democratização cada vez mais profunda do
novo poder e
o correspondente processo de devolução progressiva
das funções usurpadas pelo estado à sociedade mesma. Não há que tomar o
poder, senão construí-lo. Não há que tomar o sistema por assalto, há
que deconstruí-lo e nesse processo experimentar, desenhar, sonhar, um
sistema alternativo.

3) Somar e não rachar. Construir e não destruir. Convencer e não vencer.
Representar e não suplantar.

Nova forma de fazer política.

Mas,
como construir então um sistema alternativo global? O zapatismo com o
mandar obedecendo, e o mundo onde caibam muitos mundos propõe algumas
pistas para isso. Propõem um terceiro elemento. A construção de um novo
mundo, de um mundo outro, precisamente de outra política. A história da
esquerda de nossos movimentos está cheia de tristes exemplos onde os
piores vícios do poder dominante foram reproduzidos em nossas
organizações, em nossas decisões, em nossas estratégias. É uma história
que separava os meios dos fins. Se procurávamos um mundo melhor para
todos,
o socialismo, o comunismo ou a revolução a secas, isto justificava
qualquer meio para se chegar a isso. Hoje, através da história, sabemos
que
este pensamento pragmático deixou muito que desejar e que as
cooptações, a corrupção, o sectarismo, o vanguardismo, o setorialismo,
o autoritarismo
abalaram a credibilidade e a esperança dos povos
que viram seus dirigentes revolucionários converter-se em
ditadorezinhos em seus partidos, em suas
organizações. Que viram
enriquecer-se às classes que falavam de um mundo igualitário. Que viram
reproduzir o poder que tanto se criticava. Os que se diziam dominados,
convertiam-se em novos dominadores. Uma nova ética, fundada em espaços
coletivos é condição imprescindível para um novo mundo.
Por isso o
zapatismo propõe aos movimentos somar e não rachar, acostumados estes à
divisão, à discussão estéril. Propõe construir e não
destruir,acostumada a esquerda a dilapidar todo o feito de mudança para
controlar tudo o que quer. O zapatismo propõe convencer e não vencer,
acostumada a esquerda aos piores vícios do acordo a escuras, da votação
que achata, do
acordo imposto. Propõe representar e não suplantar;
construídas as organizações e os partidos com as vozes de muitos que na
prática costumam ser a voz de um só.

Sem novos movimentos,
que se desenvolvam, experimentem e atuem dentro de um novo marco ético,
o outro mundo se afasta, com o descrédito frente aos olhos dos povos.

4) Há que caminhar ao ritmo do mais lento.

Revolução e sujeito de mudança

Eliminando
o velho vanguardismo, esse que dizia que se uma elite clarificada tinha
o programa e a estratégia adequadas, as massas iriam correndo abraçar a
revolução, o zapatismo entende mais a nossas
estratégias de
resistência e construção de alternativas como um processo. A imagem
"ultra" de empurrar metas que ainda não são realizáveis se derruba
frente à idéia de que há que caminhar ao ritmo do mais lento.
Eliminando
de novo a intenção de impor idéias e estratégias que por muito
corretas, por muito avançadas que sejam não podem ser cristalizadas sem
o
outro, sem os outros, que devem compartilhar, entender e
enriquecer ditas propostas. Caminhar ao ritmo do mais lento é construir
um processo coletivo para caminhar, e não correr deixando ao resto
atrás.

Por outro lado, o mesmo levantamento rompia com o
esquema do sujeito revolucionário. Enquanto uma parte da esquerda se
nega a reconhecer que não só há um ator de transformação, o pensamento
e a ação zapatista são um exemplo entre muitos outros de que nenhum
setor tem um papel histórico predeterminado. E mais ainda, que a classe
operária industrial, à que se atribuía um papel protagônico teve
posições bem mais conservadoras frente à emergência de novos atores
como os povos índios, os trabalhadores desempregados ou os movimentos
de mulheres e pelo ambiente.

5) Há que caminhar perguntando.

Diálogo

Finalmente
os zapatistas dizem que há que caminhar perguntando. Toda a concepção
zapatista é uma forte crítica ao pensamento ortodoxo de esquerda, mas
mais ainda, ao pensamento moderno ilustrado. Caminhar
perguntando
implica o reconhecimento dos outros como atores para as alternativas e
a construção, digamo-lo assim, revolucionária. Caminhar perguntando se
inscreve numa visão profundamente democrática interna e
externa
dos atores. Implica reconhecer que podem existir outras estratégias,
implica reconhecer que devem mediar estratégias de consulta e consenso
ao interior de nossos movimentos e que o diálogo como forma de
articulação é um veículo poderoso entre os movimentos para desarticular
muitas formas de dominação de maneira radical.

A ação do EZLN
está cheia de exemplos de caminhar perguntando: Desde processo de
consulta e construção interna do zapatismo, até os processos de
encontro nacional e internacional que o EZLN convocou em inumeras
ocasiões aos movimentos. Em todos os casos, das cinco contribuições que
comentamos aqui, a praxe zapatista representa um experimentar
constante.
Não desejamos mitificar aqui a ação zapatista. Sabemos
e conhecemos suas próprias limitações, contradições e erros.
Parece-nos, no entanto, que o movimento zapatista faz contribuições ao
pensamento crítico que não podemos deixar de lado porque são
assinalamentos profundos de uma reconstituição de nossas formas de
pensar e construir nosso horizonte utópico. Estas cinco contribuições
se entrelaçam cada uma, estes cinco
sonhos são como as cinco
pontas de uma estrela, a zapatista que abre uma discussão universal
sobre o poder, a diversidade, o estado, a revolução e
as formas de
fazer política. A estrela vzapatista não é um novo dogma. É uma fissura
no pensamento hegemônico para pensar ao inverso e para olhar do outro
lado do muro.

Gretas e fissuras do gordo muro capitalista

Retomemos,
finalmente nossa idéia inicial. Voltemos ao muro sistêmico do qual
falávamos ao começo desta intervenção. Olhemos novamente no
muro,afastemos a vista. Saiamos do zapatismo. Procuremos finamente por
toda a parede do capitalismo. Veremos, se soubermos ver, que há mais
fissuras e coarteaduras. O Exército Zapatista de Libertação Nacional é
um sintoma,
um sinal, uma pista, um sinal entre muitas outras. Uma greta entre muitas outras.

Frente
aos limites do sistema formal, frente à pobreza e a exclusão uma
pequena parte dos povos resiste, mas também experimenta com novas
formas de fazer relação humana. Os sem terra, os zapatistas, os
piqueteros
territorializam suas resistências, criando pequenas
zonas, pequenas ilhas de libertação. Fissuras do sistema. Erros da
Matriz. Outros mundos,
"outras coisas" como dizem os zapatistas.
Nesses espaços que não chegam a erosionar o funcionamento geral
sistêmico, digamos a fortaleza do muro, no
entanto, opõe-se uma
ação e um pensamento diferente ao hegemônico. São laboratórios de
experimentação: juntas de bom governo, assembléias populares, terras
tomadas que produzem; são sinais, pistas de como se olha
a vida, o
mundo, do outro lado do muro. Frente à individualização e a
concorrência se opõem o comunitarismo, a solidariedade e a cooperação.
São
espaços onde se deconstrói o pensamento dominante. São espaços
onde vemos alguns sinais de como seria uma nova educação, novas
relações de intercâmbio e de comércio, formas experimentais de produzir
cultura e
informação e o mais importante, formas novas de poder
coletivo. Nessas experiências, mas também em muitas outras em todo o
planeta, não há distinção entre lutas políticas e sociais, entre lutas
materiais e
culturais. Igual se põe a mover a produção que
questionar as relações hierárquicas e patriarcais. Igual há formas
políticas de resistência
frente ao capital e o neoliberalismo que
reivindicação da identidade cultural local. Igual se luta local e
nacionalmente que globalmente. Nesses espaços se começou a derrotar o
poder simbólico que mantinha atados aos grupos subalternos. A greta no
muro começou a alargar-se.

Pensamos que essas fendas, essas
fissuras, essas ilhas de libertação podem crescer, podem articular-se.
Podemos, como diz o Subcomandante Marcos, fazer de nossas ilhas uma
barca para ir encontrar-nos. Uma fissura que se reúne com outra pode
provocar que se desmorone uma parte do muro. Centenas de pequenas
gretas, enredadas entre si, de muitas formas, de muitos
tamanhos poderia quiçá, talvez, derrubar e fazer estourar ao muro por completo.

Não
o sabemos com certeza. Quiçá valha a pena tentá-lo. Quiçá sim há algo
melhor por trás do muro. Quiçá seja esse outro mundo, que dizemos, que
é possível.

Enrique Pineda é integrante da agrupação mexicana Jovens em Resistência
Alternativa e recém egressado da carreira de sociologia na Universidade
Autônoma Metropolitana Xochimilco. Contato:
 resistenciaglobaljra@yahoo.com.mx

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