Quando a reitoria da UFMG esteve “ocupada” – Um relato. [1ª Parte]

Alguns dias de uma falsa alvorada

Um relato crítico sobre ocupação da reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais

– Parte 1 de 3 – 

 

In one realm only are they free and there they may roam at will – but they have not yet learned how to take wing. So far there have been no dreams that have taken wing. Not one man has been born light enough, gay enough, to leave the earth!

[Apenas num reino eles são livres e lá podem perambular à vontade – mas ainda não aprenderam como levantar vôo. Por enquanto, não houve sonhos que levantaram vôo. Nenhum homem nasceu leve o bastante, descontraído o suficiente, para deixar a terra!]

(Henry Miller, Tropic of Cancer)

Ce que nous revendiquons en exigeant le pouvoir de la vie quotidienne contre le pouvoir hiérarchisé, c’est tout. Nous nous situons dans le conflit généralisé qui va de la querelle domestique à la guerre révolutionnaire, et nous avons misé sur la volonté de vivre. Cela signifie que nous devons survivre comme anti-survivants. Nous nous intéressons fondamentalement aux moments de jaillissement de la vie à travers la glaciation de la survie (que ces moments soient inconscients ou théorisés, historiques – comme la révolution – ou personnels).

[O que reivindicamos ao exigir o poder da vida cotidiana contra o poder hierarquizado: tudo. Situamo-nos no conflito generalizado que vai desde a querela doméstica até a guerra revolucionária, e apostamos na vontade de viver. Isso significa que devemos sobreviver como anti-sobreviventes. Estamos interessados fundamentalmente pelos momentos de rebento da vida atravessando a gelidez da sobrevivência (e esses momentos são inconscientes ou teorizados, históricos – como a revolução – ou pessoais).]

(Raoul Vaneigem, Banalités de Base)

E se queimássemos a UFMG???

(Escrito em faixa exposta como intervenção crítica à festa de posse de mais uma gestão da diretoria do DCE-UFMG, apropriação deturpada do enunciado “Et si on brûlait la Sorbonne?”, pichado por estudantes franceses em muro da Paris de 1968)

O objetivo desse registro é tornar real o exercício do que poucamente pôde ocorrer durante considerável parte dos eventos que tento reproduzir aqui, a partir dos testemunhos que eu mesmo pude fazer, testemunhos acima de tudo práticos. Ou seja, muito diferentemente dos critérios distanciados e congelados do jornalismo mercantil e dos cientificismos pretensamente tidos como a mão única do “verdadeiro” ou do “legítimo”, estarei me expressando durante a redação desse texto como atuante e observador simultâneos do que aqui re-montarei como momentos políticos, emocionais, sexuais, lúdicos, intelectuais, psicológicos, bio-físicos, existenciais, teórico-práticos, dentre várias outras definições para muito do que nossa condição de sobreviventes visa sempre a apagar violentamente, muito embora continuemos a ser tudo isso num só instante totalizado e dinâmico. Saltarei para alguns meses atrás (o que restou dele em mim e, quando acessível, no mundo) para, na amplitude do agora, fazer deles instrumento de reflexão e, talvez, ferramenta de propulsão de atos outros, possivelmente triunfais ou fracassados.

Espera-se que esse relato seja apropriado, também, como contribuição a uma crítica severa e intransigente ao burocratismo ou qualquer gênero de regulação abstrata que, quando empreendida, volta-se para tornar indiretas relações ou situações desde já potencialmente diretas e bem capazes de romper, no primeiro instante, muitas das amarras e condicionamentos que ainda se enrijecem em torno do indivíduo atomizado moderno. Em suma, instituído por e dizendo respeito ao homem, o burocratismo se inverte e se volta contra ele, contra sua espontaneidade ativa possível em situações pontuais.

Tal tipo de mecanismo – que em muitas das circunstâncias, mas nem sempre, tende a surgir de forma discreta, desapercebida – já é, na crueza de si próprio, reprodução das relações alienadas em que diariamente estamos mergulhados, exatamente por advir da instituição de sistemas “relacionais” que, ao contrário de propiciar a realização da relação e do debate, se põem entre os sujeitos e os separam grotescamente, se colocam à frente ou antes do indivíduo mesmo. A iniciativa burocrática já expressa, a princípio – em contrapartida ao que normalmente ousam argumentar os próprios adeptos da mesma, a fim de justificá-la –, a explícita incapacidade de se consumar o mínimo do que poderíamos conceber como organização. Burocracia em nada se associa com construir organicamente uma coletividade no tempo e no espaço; é, por outro lado, anti-organização por si só, medida que a torna de uma só vez impossível, uma vez que se pauta basicamente na aniquilação do indivíduo e na imposição arbitrária de um sistema de “participação” qualquer que tende sempre a funcionar como fim em si mesmo, quer dizer, como mantenedor e/ou legitimador de si próprio enquanto sistema. A concepção de organização que podemos ter como parâmetro para elaborar tais tipos de afirmações é justamente aquela que brota do debate sempre fomentado, o tipo de diálogo que só se confirma, só se configura quando é aceitado que a ação sobre as demandas reais ou mais ousadas colocadas – ainda que sejam infinitamente impossíveis de serem materializadas – não segue programas engessados e nem mesmo os aceita como condição do ato.

Cabe justificar, por fim, o porquê de não termos optado por detalhar dados mais precisos sobre os autores dos relatos que coletamos, tanto de correspondências virtuais quanto de debates em listas de e-mails ou mesmo conversas pessoais, ou sobre pessoas presentes em alguns eventos específicos de toda a trama que tencionamos abordar. O motivo é meramente corporativo, tendo em conta que estamos, aqui, lidando frente a frente com uma instância pública cuja gestão maior, a reitoria, tem se empenhado, nos últimos dois anos e meio, em abrir processos administrativos contra professores e estudantes que se posicionam contra suas políticas mercadológicas e repressivas. São, hoje, dezenas de estudantes matriculados dependurados institucionalmente, sob risco de serem jubilados por participação em mobilizações dentro da universidade, enquanto, como pudemos saber confidencialmente, uma funcionária da universidade que enviara e-mails a vários destinatários informando criticamente sobre o dia em que a polícia fechou as vias de entrada e saída do IGC foi ameaçada de ter que responder a processo interno.

Dia 3 de abril de 2008 – O diálogo e a troca: questão de polícia.

Uma iniciativa espontânea de alunos do Instituto de Geociências (IGC) da UFMG é sufocada brutalmente por um abastado contingente policial que tomou o campus contra o diálogo e a troca intersubjetiva de experiências. Feridos, detidos, situações de cárcere privado e até mesmo de algo que podemos caracterizar como tortura formaram a somatória de um fim de dia que portou, mediante anseios de estudantes, apenas o desejo de continuar trajetórias de debates sobre questões instaladas nos dias, nas rotinas tediosas, nos afazeres diários, na condição suprema da sobrevivência que, como diria Milton Santos, “está sempre por um fio”. A exibição do filme Grass Maconha, direção de Ron Mann, 1999, e distribuído recentemente pela revista Superinteressante foi irrefutavelmente censurada, reprimida, criminalizada e tachada como justificativa para o porrete autoritário dos cães de guarda do Estado e do mercado. Quando cheguei ao local, estupefato com a quantidade de viaturas e com o helicóptero que sobrevoava rasamente o campus Pampulha da UFMG, a situação já se mostrava mais amena, se comparada a tudo o que ouvi logo depois, conversando com várias pessoas que testemunharam em ato o desenrolar dos acontecimentos. O jardim de entrada do IGC se transformara, durante alguns minutos daquele dia, num verdadeiro campo de batalha, policiais baixando o cacete sobre estudantes, xingamentos de todos os lados, pessoas em pânico ou raivosas a gritar pertinências ou palavras de ordem cheias de moralismos lamentáveis (“Polícia é pra ladrão! Pra estudante, não!”), número considerável de pessoas feridas, uma estudante desacordada por conta de uma cacetada que a legou um corte de quatro pontos na cabeça. No mesmo dia, durante a festa itinerante Natora, acordamos uma assembléia para as 14h do dia seguinte, na arena do IGC. Um ex-aluno do instituto, presente no local quando do início das negociações entre estudantes e policiais, alguns minutos antes da eclosão do incidente, nos diz primeiramente sobre sua ligação atual com a universidade, vínculo cujo estatuto pode ser sintetizado como, segundo ele, o de “trabalhador precarizado da Faculdade de Educação – contrato temporário/autônomo via FUNDEP – que daqui a pouco, para usar o bebedouro, tem que pagar boleto”. Num de seus relatos, escrito por e-mail num grupo de rede, detalha pontos importantes sobre outras edições do projeto que se desenrolava nesse mesmo dia; fala sobre um debate ocorrido no segundo semestre de 2007, após a exibição do longa-metragem Tropa de Elite, quando vários alunos, dentre eles alguns que exerciam a profissão de policiais militares, todos tentando esmiuçar as polêmicas engendradas por aquele filme tão comentado nessa época. Comenta, então:


A questão decisiva é que aquele momento foi uma prática de reflexão que não foi unilateral!!! Se um professor passar um documentário sobre fanatismo religioso ou alcoolismo, acontecerá o mesmo tratamento repressivo por ele estar fazendo apologia ao terrorismo ou ao consumo de bebidas alcoólicas???


E complementa, mais adiante do relato:


A diretoria do IGC sabe que estas atividades acontecem com freqüência, e que esta acontecia num horário que não atrapalha as atividades de ensino do Instituto (no intervalo do diurno e do noturno). E umas coisas que foram expostas pelos alunos, funcionários, seguranças (DIVIU), nesse momento, dão pano pra manga. E sobretudo a truculência da direção da universidade ao autorizar a PM a intervir fisicamente contra uma atividade organizada por estudantes. Isso tem que ser discutido, e esclarecido, pois existem registros do que ocorreu… perguntas tem que ser feitas sobre a agressão ao/no IGC: uma delas é se para fazer perguntas e tentar respondê-las, teremos de pedir autorização para a direção da universidade?

Tal fato político, que sai de forma tão descomprometida e gratuita das mãos de um regimento de todo questionável de uma universidade evidentemente conservadora, progressista, exclusivista, elitista e que inevitavelmente pleiteia seus territórios de classificação em meio às lutas e rosnares intelectualistas, desencadeou as mais óbvias reações contrárias de diversos setores do corpo acadêmico que a sustenta. O ocorrido colocou à mesa as questões mais prementes relacionadas à concepção do público no ensino, no aprendizado, na troca necessária entre os sujeitos que constituem – à força da necessidade ou mesmo do interesse – a construção da legitimidade institucional da UFMG. Não nos escoraremos no requinte sem substância dos discursos pré-construídos em torno da função social da universidade pública, seu papel imprescindível na formação da república ou da unidade identitária nacional. Levaremos em consideração durante toda a trajetória desse relato, em vez de tudo isso, o fabuloso embuste retórico capaz de ser gerado pela idéia e pela própria prática do público, a lógica que o robustece e, mais incisivamente, a supressão do indivíduo no contrato e no conjunto de coerções que o imerge na sociedade civil e o sujeita aos parâmetros reguladores produzidos e praticados exclusivamente pelo Estado, em quaisquer de suas variantes históricas.

Não queremos, aqui, discorrer sobre o quanto isso que é de todos e de ninguém – mas que permanece paradoxalmente regido por órgãos máximos do poder separado – foi corrompido durante os acontecimentos desenrolados no IGC. A idéia de público é, por si só, a pseudo-conquista dos que pretendem, durante suas projeções do mundo, abrir perspectivas e realizar de fato o plural e o diferente, o individual e o coletivo, tudo em rigorosa simultaneidade com a atuação sobre suas próprias questões. É nada mais que uma conquista de Direito que cerceia, vez ou outra, o próprio homem que erige o Direito no tremendo falsete de nele ter visto um instrumental de liberação. A questão sobre a qual queremos tratar diz respeito, por outro lado e sobretudo, ao desejo de praticar e teorizar (e manifestar de corpo presente esse desejo) os espaços que somos bem capazes de fundar, inventar e re-inventar; configurar e reconfigurar; representar e gerir entre nós, em conformidade com o fato de que as questões do mundo e da sociabilidade, seus impasses mais corriqueiros ou complexos, não estão dadas de forma simplória ou como um per si; pelo contrário, só são possíveis de ser criticadas e suplantadas no diálogo prático sobre os intensos incômodos, os recorrentes desconfortos que a presente vida social vai parindo desde de nossas relações rotineiras, dia após dia.

Dia 4 de abril de 2008 – Prelúdios enganosos.

Pela manhã, a notícia da repressão no IGC já corria hemorragicamente pelo campus. Antes de minha entrada em sala de aula, um de meus professores – responsável pela disciplina do dia – me abordou num dos corredores da FAFICH e, curioso, atirou sobre mim algumas perguntas sobre o evento do dia passado. Mostrou claramente seu posicionamento de discordância frente a tal fatalidade e assumia que algum tipo de providência deveria ser tomada quanto a tudo aquilo. Um dia antes, eu já soubera que outra de minhas professoras comparecera ao prédio do IGC para se informar dos acontecimentos, o que acabou levando-a a tornar o assunto motivo para debate em sala de aula, no último horário do turno da noite do próprio dia 3. Presenciei essa conversa em sala e me surpreendi com as posturas contrárias ao incidente por parte da maioria das pessoas (visto o conservadorismo geral que domina departamentos, corredores e outras seções existentes no prédio). Durante a aula de sexta-feira de manhã, da janela da sala, pude avistar pessoas que compõem a diretoria do DCE-UFMG entrarem pela portaria de frente do prédio. Saí de sala e os deixei a par da assembléia combinada para ocorrer às 14h daquele dia. “Marcamos outra para as 19h”, disse um deles. Haviam assembléias a serem ainda firmadas para o diurno e o noturno, portanto.

Ao sair da primeira aula do dia, em torno das 9h30, fui ao IGC para confirmar o horário da primeira assembléia e, chegando na arena do prédio, vi que já ocorria ali uma assembléia espontânea entre alunos do instituto, sem mesa, no tête-a-tête, todos que quisessem falando e ouvindo quantas pessoas fosse possível. Muitos se mostravam nervosos e, de tempo em tempo, o local começava a receber mais pessoas. Cogitava-se declaração de greve geral de alunos no instituto. Após um período em conversa, planejamos uma forma de convocar à assembléia uma parte responsável pelo incidente: diretora e vice-diretora do IGC, Cristina Augustin e Tânia Dussin, respectivamente. Fizemos barulho com vozes e tambores no saguão, convocando-as, chamando-as a aparecerem. Cristina se insinuou na balaustrada, anunciou sua descida, desceu, conversamos e exibimos as filmagens feitas no momento da confusão por alguns estudantes. Muitos foram os que, assistindo às imagens, começavam a gritar nomes, como se os fatos estivessem se desenrolando ali mesmo, naquele momento. O episódio da voz de prisão ocorrido no interior do prédio ficou mais nítido e preciso por meio das imagens do vídeo: uma discussão, o aluno expressa sua vontade de sair do prédio, identifica-se com carteira estudantil, um discreto bate-boca, um policial se posiciona sorrateiramente por trás do aluno e, numa ordem, esse mesmo homem avança sobre ele e o imobiliza, enquanto o que discutia diz algo como: “Está preso! Desacato!”. Afora o caráter abusivo típico da própria justificativa legal da prisão, pois sabe-se que desacato à autoridade pode ser e normalmente é gritado em circunstâncias que bem convêm à farda, foi justamente esse evento que gerou toda a mobilização instantânea de alunos, que se nortearam justamente por impedir a detenção do estudante e a saída da viatura.

O mesmo aluno que fora detido e liberado no mesmo dia se pronunciou à assembléia e narrou as horas de completa dúvida sobre o que iria acontecer a si. Disse que foi mantido algemado por duas horas num porta-malas de uma viatura Pálio que, conduzida pelos militares, rodava incessantemente, sem que ele pudesse distinguir nem por onde nem o que pretendiam fazer, o que fariam etc. Mostrou a Cristina e Tânia as marcas em seus punhos, decorrentes do aperto excessivo das algemas que ele teve de “carregar” durante todo o momento. Continuou o relato: os policiais pararam a viatura, abriram o porta-malas e, quando o aluno saiu, via mato para todo lado, um local desabitado e isolado. Os policiais iniciaram as torturas psicológicas, dizendo que iriam matá-lo, que encontraram gramas de maconha com ele, mas acabaram por levá-lo à delegacia e fichá-lo em cinco acusações, dentre elas incentivo à baderna, desacato à autoridade, apologia às drogas. Cristina não se sustentou no alvoroço e voltou ao seu cômodo gabinete, mas não deixou de ser convidada para a assembléia das 14h, discutida e decidida nessa mesma assembléia que ocorria, simplesmente surgida no turno da manhã. Professores do IGC já estavam paralisados nessa sexta-feira, mas nada que prenunciasse uma greve, apenas um luto por o que se sucedera naquele local no correr da última noite. A pergunta que imperava era a que se referia à autorização da entrada da polícia no campus, ato que deveria, como pensávamos, passar pelo aval de uma autoridade da reitoria.

Após o horário de almoço, fui à assembléia geral das 14h. Algo muito esperado já ia acontecendo: uma mesa composta por três integrantes da diretoria do DCE estava formada (todos, inclusive, com camisas da gestão), o microfone emperrado em poucas mãos por longos minutos, lista de inscrições instituída e uma encorpada burocracia decisória capaz de desalentar qualquer humano minimamente respeitoso por si próprio. Mesmo sob gritos de “Acabem com a mesa!”, insistiram e mantiveram (com apoio de um número considerável – embora não tão significativo – dos ali presentes) o formato toscamente antiquado, distanciado dos demais. Era apenas o início de um processo de aparelhamento das mobilizações que viriam a se despertar a partir de então no campus. A lista de inscrições para falas foi invadida por integrantes de grupelhos partidários que se contentavam a pronunciar leviandades, rememorações repetidas de episódios similares àquele, gabando-se de algumas das suas participações em alguns processos outros de um “movimento estudantil”. Masturbação sem tamanho, tédio absoluto, frases de efeito completamente obsoletas, poucos encaminhamentos objetivos – quer dizer, que lidavam de fato com as condições objetivas ali postas – para muito tempo de assembléia. O tamanho aborrecimento que me acometeu, o cansaço implacável me deixou indisposto o bastante para que eu não voltasse à assembléia do turno da noite.

5 de abril de 2008 – Mercado informacional: baluarte desnudado da miséria diária.

A imprensa já se ocupara de sua previsível “função social”.

O jornal Hoje em Dia praticamente criminalizou os estudantes pelo tumulto do dia 3. Dizia em manchete: “Estudante é preso por participar de exibição de filme impedido”. O corpo de sua matéria era simplesmente risível em termos de má-fé.

O Estado de Minas, com todo o seu compromisso com a corporação militar do estado, cuidou de ser protetor de toda a animalesca, optando inicialmente pelo silêncio, pelo não-sabe-de-nada, o tipo de neutralidade que normalmente deixa para a lâmina o pescoço de alguém, alguém bem presumível, ou seja, nós. Publicou na rede um comunicado da Secretaria de Estado de Defesa Social que fez uso, como elemento comprobatório da regularidade de toda a atrocidade ocorrida, do único documento público lançado pela Polícia Militar, revestido de atribuições que dificilmente poderiam ser provadas, pelo simples fato de consistirem em afirmações precariamente mentirosas ou mesmo desleixadas. É justamente nessa declaração que o alto escalão da polícia afirma tão descarada quanto pateticamente que a estudante ferida com um corte na cabeça durante o conflito fora alvejada por uma pedra arremessada por outro estudante (sabemos, por relatos de testemunhas e da própria moça, que a costura de quatro pontos em sua cabeça foi resultado de uma porretada a cassetete executada por um dos militares envolvidos na operação; a pedra teria sido de fato atirada por um estudante contra a viatura policial logo após a queda da dita aluna ao chão). Como se não bastasse, nesse mesmo comunicado a polícia, de maneira ingênua ou cheia de malícia, denomina a atividade realizada no IGC de um “encontro marcha da maconha. Daí já se pode concluir a tamanha dissonância entre dados, versões e evidências em torno dos fatos testemunhados e vividos nesses dias: convém esclarecer que a Marcha da Maconha foi uma passeata marcada para algo em torno de um mês adiante (foi, aliás, impedida, primeiramente por iniciativa judicial por parte de um desembargador de BH, depois por veto do uso em massa do espaço público pela prefeitura da cidade); nada tinha de vínculo determinante ou necessário com a exibição de Grass Maconha no IGC, tampouco com a universidade, muito embora algumas pessoas integrantes da comunidade estudantil da UFMG se manifestassem simpatizantes ou mesmo solidárias ao movimento e desejassem engrossá-lo quando de sua data.

Mais tarde, já durante a ocupação, a repórter da TV Alterosa dirá, durante cobertura da primeira assembléia, que os estudantes teriam chegado ao local “já preparados” para lá se instalarem. Sua afirmação ingênua e demasiado cômoda não levou em conta os intermináveis problemas estruturais que insistiam em surgir na ocupação já instalada e toda a articulação individual e autônoma voltada para supri-los, nem mesmo o fato de que a ocupação ou não do espaço foi decidida em assembléia geral no mesmo dia, com todas as questões que possamos levantar em torno das votações ocorridas.

Alternativa a isso surgiu ulteriormente, mediante a criação de um blog da ocupação, e eu mesmo já tratava com um ex-estudante da instituição a redação de uma matéria na coluna central do Centro de Mídia Independente. Como veremos, não houve condições muito propícias para consumar esse projeto.

 

6 de abril de 2008 – Quando o sangue derramado aquece outros sangues mais.

O domingo deixava pairar dúvidas. Nas redes de internet, várias questões já iam sendo levantadas quanto ao que fazer frente a todo o ocorrido. Cartas virtuais de congregações universitárias e de professores indignados já circulavam em meio ao turbilhão, tateando levemente discursos em torno do que já foi dito mais acima: como se resignar diante de tal tipo de deformação das idéias de público e democracia tão ressaltadas pela própria postura institucional da UFMG? O que soava, a todo o momento, como um enfoque dado ao revés e muitas vezes insuficiente.

O que fora de supetão ali protagonizado era, desde já, o modo como um momento construído para a troca direta de experiências sobre nada mais que as limitações da idéia de liberdade humana para os tempos de hoje é, de modo bizarro e truculento, dispersado à força de cassetetes, sprays de pimenta, cavalaria, automóveis e, impossível rejeitar, uma sobra considerável de prepotência e ignorância institucional. Um dos professores presentes nos eventos, em conversa conosco, fala, sobre a repetida transferência de competências que se deslanchou desde então – a gestão da reitoria da universidade se isentou absolutamente das responsabilidades sobre os incidentes que se desenrolaram naquela quinta-feira que passara, a diretoria do IGC não sabia como as coisas puderam adquirir tal proporção – que a questão primeira é: a universidade de alguma forma foi invadida e, ao fim e ao cabo, ninguém tem uma gota sequer de responsabilidade sobre qualquer migalha do ocorrido. Quanto aos espancados ou não que se encontravam em meio à balbúrdia (alunos e professores), esses mesmos não tinham em mãos qualquer recurso para controlar ou contornar a situação, pelo menos a partir de quando a polícia começou a operar. O já citado professor relata em e-mail enviado numa lista de discussões: 

 

Por volta das 18:40, estava no prédio para o plantão da AGB-SLBH e atendendo estudantes das disciplinas que leciono na UFMG quando a negociação com a PMMG virou ação de prisão e agressão aos estudantes e professores presentes. Algumas horas depois, estávamos em hospital para socorrer um colega agredido, que não se dispôs a participar da denúncia coletiva em razão do receio de perseguição policial e institucional posterior. Ou seja, ele abriu mão de um direito fundamental de denunciar os órgãos de Estado que perpetraram uma violação à integridade física e espiritual das pessoas.

 

E, logo em seguida, esquematiza sua acepção de prioridades:

 

(…) vemos dois fatos graves para a Universidade como lugar das práticas que primam (ao menos deveriam primar) pelo conhecimento crítico (criterioso): 1. Interdição de uma atividade proposta por membros da comunidade universitária; 2. Operação policial cuja autorização foi verbalmente afirmada pelo comandante da operação (como ouvimos dele na portaria do prédio) mas não assumida pelas autoridades do IGC (Diretoria) e da UFMG (Reitoria) e, tão grave quanto, foi desproporcional à quantidade e perfil das pessoas e atividades que se encontravam no prédio.

Como se vê, a única afirmação categórica ficaria para as fofocas do senso-comum, que literalmente julgaram os “maconheiros do IGC” como apologistas das drogas ou baderneiros. Vale salientar, portanto, que por mais que estivessem ali colocados dilemas que também giram em torno do Direito, não é absolutamente em torno do reconhecimento desse que transitam as próprias iniciativas voltadas para comunicar, trocar, pensar e agir em meio aos dias, ou melhor, cotidianamente. O que se desencadeava ali, naquele momento, não transpunha o simples exercício de uma prerrogativa humana fundamental e necessária para que os tubarões não estejam sempre tão à vontade para devorar os minúsculos cardumes ou a multidão marinha ao seu redor. Expressar-se livremente no mundo e frente ao mesmo é, desde o princípio, condição de possibilidade para se viver efetivamente isso que denominam pluralidade e, talvez, poder inverter a linguagem do ideologismo único instituída; em resumo: isso pode e deve se realizar sob, contra ou para além do Estado e não depende, em nenhum de seus aspectos, de estar sob sua tutela institucional. Esse tipo de posicionamento urge como alternativa e pode se efetivar em qualquer lugar, não é necessariamente adequado ou específico de uma esfera especial da política, e nada tem a ver com reconhecimento institucional. Caso contrário, falamos de regimes sustentados com base no silenciamento generalizado da autonomia e, para ser mais enfático, na inversão maliciosa entre a totalidade do vivido e o não-vivido totalitário, características típicas dos regimes históricos em que esta última opção vence espaçosamente por longo tempo. Em todos os cantos, muito semelhantemente ao que já nos diz uma das epígrafes a esse relato, das pequenas briguinhas locais até os empreendimentos mais absurdamente destrutivos por parte de corporações transnacionais – que, como se sabe, são a figuração mais evidente do capitalismo contemporâneo – e as grandes guerras invasivas conduzidas por empresários do mercado e do Estado, potencializa-se uma demanda por vida (e entendemos por vida totalidade e dinamismo radicalmente postos) que já é e nunca deixou de ser, em essência e concretude, uma questão política.

 

…Continua…

This entry was posted in Artigos. Bookmark the permalink.